Pretextos que escondem<br>reais objectivos

Rui Fernandes

Hi­pó­crita: in­di­víduo que, ao pro­fessar vir­tudes que não res­peita,
as­se­gura as van­ta­gens de pa­recer ser aquilo que des­preza.

Am­brose Bi­erce

Um con­junto va­riado de me­didas de na­tu­reza se­cu­ri­tária, e mais ainda de dis­cursos e de­cla­ra­ções, estão em de­sen­vol­vi­mento. O en­ve­lope dis­cur­sivo que en­volve tais me­didas e res­pec­tivas re­tó­ricas é o do com­bate ao ter­ro­rismo, o de ga­rantir a li­ber­dade e o fun­ci­o­na­mento de­mo­crá­tico das so­ci­e­dades. A hi­po­crisia e o so­fisma cam­peiam. Quanto mais falam em li­ber­dade e de­mo­cracia, mais me­didas res­tri­tivas da li­ber­dade adoptam e mais re­gras im­po­si­tivas de­cidem. Al­guns, per­cor­rendo ve­lhos ob­jec­tivos, per­guntam, re­to­ri­ca­mente ou não, se está o País pre­pa­rado para o com­bate ao ter­ro­rismo, como se algum país al­guma vez o es­ti­vesse.

Re­cen­te­mente foi apro­vado (pelos grupos par­la­men­tares que do­minam e de­ter­minam o rumo desta União Eu­ro­peia) o novo re­gisto eu­ropeu de iden­ti­fi­cação de pas­sa­geiros aé­reos (Pas­sanger Name Re­cord, PNR). Quer isto dizer que as com­pa­nhias aé­reas pas­sarão a estar obri­gadas a dis­po­ni­bi­lizar às au­to­ri­dades po­li­ciais e aos ser­viços de in­for­mação dados pes­soais que são dis­po­ni­bi­li­zados pelos pas­sa­geiros no pro­cesso de re­serva de bi­lhete. Dis­po­ni­bi­li­zação essa que passa a ser efec­tuada sem qual­quer man­dato ju­di­cial. Trata-se em pri­meiro lugar de transpor uma prá­tica já em curso entre os EUA, Ca­nadá, Grã-Ber­tanha e Aus­trália e, em se­gundo lugar, de es­tender a todos os es­tados-mem­bros, agora por de­li­be­ração, aquilo que a União Eu­ro­peia já tinha as­si­nado com esses quatro países no sen­tido de a esses países serem for­ne­cidos tais dados. Daqui se ex­traem desde logo duas con­clu­sões: a pri­meira, é que a mesma só tem um sen­tido e a se­gunda é que mesmo antes de uma de­li­be­ração já acordos es­tavam as­si­nados. Isto diz bem, se ou­tros exem­plos não hou­vesse, por onde anda a de­mo­cracia nesta União Eu­ro­peia.

Como se isto não bas­tasse, ainda se soma o facto de o tra­ta­mento destes dados serem ge­ridos por com­pa­nhias pri­vadas.

O pre­texto ati­rado para «olhos» da opi­nião pú­blica é o ter­ro­rismo, ca­val­gando a com­pre­en­sível onda de emo­ções que per­correm as pes­soas em re­sul­tado dos aten­tados de Paris e Bru­xelas. Há só um por-maior: é que tais dis­po­si­ções em nada evi­ta­riam tais aten­tados. E esta é uma afir­mação que re­sulta do con­junto de no­tí­cias vindas a pú­blico sobre os mesmos, através das quais fi­camos a saber que al­guns dos en­vol­vidos já es­tavam re­fe­ren­ci­ados (mas nada foi feito, nem mo­ni­to­ri­zação), que se des­lo­caram de carro (não de avião), etc., etc. Ou seja, de­pois de toda essa, nuns casos, in­com­pe­tência, nou­tros, ine­vi­ta­bi­li­dades, qual é o ca­minho? Dar mais po­deres dis­cri­ci­o­ná­rios para con­trolo da vida dos ci­da­dãos.

Cabe aqui, neste con­texto, a re­cente pre­tensão do Go­verno de al­terar a lo­ca­li­zação dos ga­bi­netes Eu­ropol e In­terpol da PJ/​Mi­nis­tério da Jus­tiça para a al­çada da se­cre­tária-geral do Sis­tema de Se­gu­rança In­terna (SG SSI) e que tanto mal-estar gera na PJ, com vista à cri­ação do SPOC (Single Point Of Contac), ou seja, um ponto único para onde a in­for­mação é en­viada e en­ca­mi­nhada em função da ma­téria. O mal-estar da PJ de­corre do mais vasto mal-estar há muito exis­tente nesta po­lícia, ob­jec­ti­va­mente de­pre­ciada nos úl­timos anos. Cingir as ma­ni­fes­ta­ções de pro­testo a esta pre­tensão, por parte dos in­ves­ti­ga­dores cri­mi­nais, a meras ati­tudes cor­po­ra­tivas, é não per­ceber nada do que se passa. A questão não está na exis­tência de um ponto único. A questão está em se saber se a sua lo­ca­li­zação na SG SSI, que está na de­pen­dência do pri­meiro-mi­nistro, não é sus­cep­tível de trans­mitir uma per­cepção de menor trans­pa­rência no uso dessa in­for­mação. Par­tindo deste ponto de vista, porque não ficar se­diado na PJ? Que en­tropia cria à con­cre­ti­zação do ob­jec­tivo tal opção? Há ma­té­rias em que, pela sua de­li­ca­deza, im­porta também cuidar da per­cepção e esta é uma delas. O exemplo re­cente, li­gado com o le­van­ta­mento par­cial do se­gredo de Jus­tiça sobre o ma­nual de for­mação dos ser­viços de in­for­mação, de­cor­rente de jul­ga­mento a de­correr, trouxe ao de cima que, afinal, há des­con­for­mi­dades do mesmo com os pre­ceitos cons­ti­tu­ci­o­nal­mente con­sa­grados em­bora, su­ces­si­va­mente, aos ques­ti­o­na­mentos que foram sendo feitos ao longo do tempo sobre esta e ou­tras ma­té­rias, as res­postas fossem, in­va­ri­a­vel­mente, está tudo bem. Não es­tava e não está! E não é a Cons­ti­tuição que está mal. Nem está mal a pre­tensão da Jus­tiça de apurar a ver­dade, para com juízo as­sente em factos e não em su­po­si­ções, julgar.

Na­tu­ral­mente que es­tamos em do­mí­nios di­fe­ren­ci­ados, mas o exemplo serve para ilus­trar que, in­de­pen­den­te­mente dos ob­jec­tivos e sen­tidos dados às «coisas», as es­tru­turas, as or­ga­ni­za­ções, tendem a afeiçoá-las e não raras vezes, por via disso, a des­virtuá-las. Mais grave é que os que tendo sido ques­ti­o­nados e/​ou aler­tados para um even­tual pro­blema, res­pondam que tudo está bem. Ou não cum­priram o seu papel, e daí devem ser ti­radas as de­vidas ila­ções, ou cum­priram e omi­tiram a ver­dade e nada fi­zeram, e daí devem ser re­ti­radas as de­vidas con­sequên­cias.

 



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